quinta-feira, 23 de junho de 2011

Analisando Kubrick: "A Clockwork Orange"


        Para uma melhor análise do filme Laranja Mecânica, é importante contextualizá-lo na época de sua produção. Burgess, autor do livro em 1962 e o filme foi lançado em 1971, no auge da chamada contracultura. As décadas de 1960 e 70 produziram um conceito artístico de grande apelo visual (o Psicodelismo), advindo do uso de drogas psicotrópicas como o LSD, mais presente nos dias de hoje. As tonalidades fortes e vibrantes eram a marca deste movimento, que produziu inúmeras capas de discos tais como o famoso Sargent Pepper’s, dos Beatles e no Brasil os da Tropicália. Nesse sentido, Kubrick e os responsáveis pela fotografia do filme “enxugaram” o conceito do psicodelismo expondo-o através do uso das cores fortes e contrastantes, mas limpando seus arabescos, cuja lembrança ocorre, por exemplo, na cena inicial, no cardápio exposto nas paredes da Leiteria Korova. O diretor manteve, portanto, a marca de sua época, tentando imaginar um cenário futurístico, de final de século vinte, onde as formas seriam mais limpas e os espaços mais amplos. Ele “releu”, enfim, o ambiente daquela época, antecipando-se à consagração do movimento pós-modernista, que viria a acontecer a partir da década de 80.
        Personalidade é a organização dinâmica dos traços no interior do ser humano, formados a partir dos genes particulares que o mesmo herda, das existências singulares que ele suporta, além das percepções individuais que tem do mundo, capaz de tornar cada indivíduo único em sua maneira de ser e de desempenhar o seu papel na sociedade. Alex era um jovem que aparentava ser não muito obediente a seus pais. Ele não se importava com seus compromissos escolares, sociais e domésticos. A origem de toda essa sua falta de responsabilidade pode ser vista no próprio lar. Com certeza, Alex deve ter crescido num ambiente que lhe possibilitou tais ações suas quando já adulto. Por negação enquanto criança e acomodação enquanto adolescente e adulto, Alex evidenciou um comportamento meio que largado; um comportamento que mostrava total falta de respeito pelas leis do contrato de sua sociedade.
       Claro que isso não se torna uma desculpa, mas pode ter gerado um tipo de resultado negativo. Vimos no filme que Alex era violento. A violência de que o filme trata não é aquela gerada pela miséria e pela exclusão social, pelo contrário, é a violência que gera e intensifica as mazelas da sociedade moderna. A gangue liderada por Alex era bastante cruel, porque violentava pessoas por puro hedonismo, ao mesmo tempo fraca, a ponto de todos serem “tementes” ao seu líder, que depois perde esse prestígio. A vida humana é tratada como um utensílio qualquer e manipulada ou violentada de acordo com os humores de indivíduos que se julgam no direito de impor seus desejos e métodos aos demais. Não se trata de ausência de valores, mas de um tipo de valor onde o respeito à vida humana tem muito baixa cotação. O intelectual por não crer na justiça legal, resolve fazer a sua própria como vingança e dispõe de uma vida para atingir seus objetivos políticos. O governo com ares de totalitarismo que é retratado no filme, tortura e condiciona indivíduos para atingir seus objetivos no combate à criminalidade. Afinal, o governo descobre que um estuprador e assassino pode até mesmo ser útil quando uma sociedade possui ameaças como pessoas que defendem suas opiniões e publicam panfletos clandestinos.
     Os filmes de Kubrick são conhecidos por suas excelentes trilhas sonoras. A nona sinfonia de Beethoven tem uma função essencial no filme. Para muitos é um crime colocá-la como inspiração para um jovem delinqüente. Mas nada em Laranja Mecânica acontece por acaso. Segundo Sérgio Alberto de Oliveira, mestre em artes e doutor em música, o diretor nos traz, através da trilha sonora do filme, uma amostra fantástica do que é uma releitura e quais as suas intenções. Partindo da idéia contrária do modernismo, que se associa à criação do “novo”, o pensamento pós-moderno não mais acredita neste conceito, mas no de que tudo já foi criado e a partir de então tudo será recriado, revisto, relido. A música erudita, simbolicamente ligada ao espírito da perfeição, do clássico, da virtude, é usada no seu sentido contrário, fazendo uma “cama” sonora para a violência e degradação ética e moral. Desta forma, a Ode à Alegria de Beethoven, um hino à irmandade, à humanidade, transformou-se na sensação pura do ódio, da raiva, da “lembrança” da agressividade humana, expostas no momento da tortura auditiva de Alex pelo diretor.
      Violento (poucos os cineastas e suas obras que conseguem misturar o prazer em geral sem tornar clichês os atos e as frases. Brigas, estupros, assassinatos são apenas um mero fato no filme, e não estragam ou deixam repetitivas as ações de suas personagens), bombástico (olha que lançar um filme assim naquela época era meio controvertido, mas mesmo assim isso não o atrapalhou em nada), arrebatador (em nenhum momento você quer sair do filme), sonoro (musica clássica de primeira linha, Kubrick usa e abusa de Bethoveen, e introduz a musica como se ela fosse uma personagem do próprio filme), dançante (se torna delicioso e muito engraçado ver uma briga, ou até uma cena de “bacanal” ao som da nona sinfonia) e assustador (imaginar um futuro como Kubrick desenvolveu assusta até o mais conservador de todos) são essas palavras que descrevem essa obra prima do cinema, todas verdadeiras.
     As imagens construídas são deslumbrantes. O visual que atraiu as gangues juvenis do Reino Unido é forte e impactante, isso se pode ver ao longo de todo o filme, os cenários de cores vivas, os ambientes, mortos e decadentes, os trajes sofisticados e complicados, além da presença dos mendigos maltrapilhos. O contraste visual permeia toda a obra.
       Lembrando que quando soube que jovens ingleses estavam imitando o visual e os hábitos da gangue liderada pelo protagonista de seu filme, o diretor Stanley Kubrick pediu que todas as suas cópias fossem retiradas de circulação no Reino Unido, no que foi atendido pela distribuidora. Talvez Kubrick não imaginasse o quanto a realidade presente no seu filme estava próxima daquela que ele retratou como pertencendo ao futuro (visto que o filme foi rodado em 1971, mas se passando em meados da década de 90). A banalização da violência e seu cultivo como lazer ou meio de vida permeiam o mundo ocidental. Laranja Mecânica vai longe nessa análise quando justapõe imagens de uma estátua de Cristo estigmatizado numa montagem na qual ele parece dançar ao mesmo som que embala a agressão que transcorre na cena.


A Clockwork Orange, Inglaterra, 1971, 138 min. Colorido. Distribuido pela Warner Bos. 
Com Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates, Warren Clarke, Adrienne Corri, Carl Duering, Paul Farrell, Clive Francis, Michael Glover, James Marcus, Aubrey Morris, Godfrey Quigley. Escrito, Produzido e Dirigido por Stanley Kubrick.

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