quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Pessoa, Crowley e o Mistério da Boca do Inferno

“Fernando Pessoa e Sintra”, “O Mistério da Boca do Inferno”, ou “Fernando Pessoa e Aleister Crowley”, são as possíveis designações de um mito envolvendo as referidas figuras, a Serra de Sintra, e suas cercanias. Crowley, nascido em Leamington, no dia 12 de Outubro de 1875, cujo verdadeiro nome tido por Edward Alexander Crowley, o mesmo de seu pai, Edward Crowley - que fez fortuna como cervejeiro e, reformando-se dedicou-se ao estudo da Teosofia - viveram durante a primeira guerra mundial nos Estados Unidos, local onde veio a escrever o Hino a Pã que Fernando Pessoa traduziu para a Língua Portuguesa - no decorrer do texto encontra-se o poema na versão original inglesa, e sua tradução portuguesa (original de Portugal). Assumindo então o nome de Aleister Crowler, tornou-se num afamado mago no início do século XX, tendo a sua fama sido mais conhecida pela infâmia com que os jornais de todo o mundo o descreviam, em muito devido à excentricidade de sua vida, e ao radicalismo da sua comunicação, ou as palavras e sentidos que essa sempre tomava.
Mago e ocultista, Crowley se auto-intitulava Mago Therion, e, também de forma mais negra, Besta 666. Aleister Crowley formou a Astrum Argentum (também conhecida como "A.A."), ordem mística que publicava material visto pelos críticos da altura como perverso e satânico. Posteriormente formou também uma ordem pseudotemplária, a Ordo Templi Orientis (conhecida como "O.T.O."), que, com a ajuda da imagem que a primeira a ser criada tinha, contribuiu para acentuar a errónea imagem e sentido que alguns espalhavam sobre a suposta perversa face dos Templários.
Fernando Pessoa, famoso e imortal poeta português, criador/escritor de “Mensagem”, enigmático poema sobre a “Portugalidade”, ou o papel e desígnios de Portugal - também foi atraído pelo ocultismo ao longo de sua vida - estudou inúmeras vertentes esotéricas as quais ia aprofundando ou abandonando conforme essas se iam tornando falaciosas (como principal exemplo temos o da Madame Blavatsky, grande bruxa Russa que, dizem as más línguas, foi uma das responsáveis pelo surgimento dos ideais nazistas – faço menção para o tema “ideais”; sabemos que o nazismo também tinha um cunho espiritual, visto que não era apenas um movimento político) ou se transformando em sentimentos críveis dentro daquele. E assim se passou com o estudo da influência dos astros: a partir de determinado período de sua vida, dedicou-se ao estudo da Astrologia, e anos mais tarde decidiu aprofundá-la ainda mais. E foi precisamente a Astrologia, que acabou por fazer com que os dois se encontrassem.
Após um circular anunciando “As Confissões de Aleister Crowley” (nota: tradução do Inglês para o português de Portugal) em seis volumes, ter ido parar nas mãos de Fernando Pessoa - a qual este achou interessantíssima -, diz a história que o próprio receberia, a pedido seu, dias mais tarde, o primeiro desses seis volumes. Ora, continha este primeiro volume um horóscopo escrito por Aleister Crowley. Após o ter estudado por curiosidade, Pessoa percebeu que o horóscopo estava errado, e que muito provavelmente Aleister Crowley teria nascido antes da hora que esse apresentava. Ao enviar o valor do pagamento para os restantes volumes, Fernando Pessoa adicionou às notas uma carta, pedindo para informarem o senhor Crowley acerca do erro do seu horóscopo, presente no primeiro volume.
Passados alguns dias - e para seu espanto - Fernando Pessoa recebeu uma carta do próprio Aleister Crowley, agradecendo-lhe a indicação do erro no dito horóscopo. E assim desse modo, iniciaram as famosas trocas de correspondências.
Tempos depois, Fernando Pessoa ao enviar uns versos seus em inglês para Aleister Crowley, versos estes que o primeiro estimava, recebeu como resposta, a informação de que o mago o desejava conhecer pessoalmente, e assim que pudesse, Portugal, tão solarento iria ser o próximo destino de suas viagens motivadas por questões de saúde.
Segundo João Gaspar Simões, biógrafo de Fernando Pessoa, esse viria a conhecer "um estranho homem, verdadeiro Cagliostro dos tempos modernos, em cuja complexidade e desenvoltura se acusam os traços típicos desse misto de charlatão e de inspirado que o nosso tímido mistificador debalde procurou ser". João Gaspar Simões escreveu ainda que Fernando Pessoa ficou muito preocupado com a tão esperada visita "daquele feiticeiro - cuja espantosa biografia lhe fora dado a conhecer lendo a história das suas estranhas aventuras na obra onde discernira o erro de interpretação astrológica".
Crowley chegou a Lisboa a 2 de Setembro de 1930, acompanhado pela Mulher Escarlate (Miss Hanni Larissa Jaeger, sua assistente), a bordo do “Alcântara”, depois de ter ficado retido em Vigo durante um dia, devido a um intensíssimo nevoeiro. "Em terra, Fernando Pessoa, transido e tímido, vê avançar para ele um homem alto, espadaúdo, envolto numa capa negra, cujos olhos, ao mesmo tempo maliciosos e satânicos, o fitam repreensivamente, enquanto exclama: "Então que ideia foi essa de me mandar um nevoeiro lá para cima?"" - João Gaspar Simões, in Vida e Obra de Fernando Pessoa: História duma Geração. Acabaram por ir depois para o Hotel l’Europe, e só depois para o Hotel Paris, no Estoril. Depois da chegada, diz-se que Fernando Pessoa só esteve com eles por duas vezes, tendo uma sido no Estoril, e a outra em Lisboa. Porém, a 18 de Setembro Fernando Pessoa recebeu uma carta de Crowley, contando-lhe que Miss Jaeger havia tido duas noites atrás, um “formidável” ataque de histerismo, deixando o Hotel Miramar de pantanas, e que logo na manhã que se seguiu, não havia sinal do rastro dela. Havia, simplesmente, desaparecido.

O Caminheiro de Sintra
"Lembrei-me um dia de traduzir o Hino a Pã, o que fiz, conforme o meu critério de traduzir verso, em absoluta conformidade rítmica com o original. Mandei a V. o poema para, como lhe disse, V. ver o que é propriamente um "poema mágico", em comparação com um simples "poema a respeito de magia" como é o meu "Último Sortilégio" - Carta de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões.
            Abaixo, mostrar-vos-ei o “Hino a Pã”, escrito por Crowley em 1929, traduzido para o português por Fernando Pessoa. Confira a seguir (notas do editor):
 Hino a Pã
(Tradução de Fernando Pessoa - Revista Presença n° 33,
de Julho/Outubro de 1933)

Vibra do cio subtil da luz,
Meu homem e afã
Vem turbulento da noite a flux
De Pã! Io Pã!
Ioô Pã! Io Pã! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e fera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo, do mar sem fim,
A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(Pegureira e pitonisa),
Vem com Artêmis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da àmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
O ver errar teu capricho exul
No bosque enredo, nos nás que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente - do mar sem fim
(Io Pã! Io Pã!),
Diabo ou deus, vem a mim, a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera!
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e me estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte leão -
Vem, está fazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque erecto,
Ó Pã! Io Pã!
Io Pã! Io Pã Pã! Pã Pã! Pã.,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus grande! Meu Pã!
Io Pã! Io Pã! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Io Pã! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Io Pã! Io Pã Pã! Pã!
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara.
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, ménade, afã,
Na força de Pã.
Io Pã! Io Pã Pã! Pã!
E aqui, o trecho original em inglês, escrito por Crowley, em 1929:

Ainda no dia 18 do mesmo mês (apenas relembrando que estamos em setembro), Crowley vem para Lisboa e encontra-se com Fernando Pessoa, mostrando-se preocupadíssimo com Miss Jaeger, pois dizia que esta estava perturbadíssima e tinha o desejo de suicidar-se, pois achava-se perseguida por um mago negro de nome Yorke. Acabaram por nunca encontrar Miss Jaeger, nem a localizaram em parte alguma da fronteira, sem ter a ciência se a mesma saíra do país em algum momento.
Crowley ficou em Lisboa até o dia 23, seguindo depois para Sintra, onde iria ficar uns dias no Casal de Santa Margarida (próximo ao bar Estrada Velha), perto da casa do dono do negócio da Shell em Portugal. No entanto, Fernando Pessoa afirma ter visto Crowley por duas vezes no dia 24, sendo que uma dessas vezes foi no Rossio, e outra no Cais do Sodré, a entrar na Tabacaria Inglesa. Em ambas não estava a uma distância que pudesse entrar em contato com Crowley. Interessante foi a Polícia Internacional, que viria a dizer dias depois, que Crowley havia cruzado a fronteira Portuguesa, no dia 23.
No dia 25 do referido mês, Augusto Ferreira Gomes - amigo ocultista de Fernando Pessoa, jornalista no Notícias Ilustrado - encontra acidentalmente junto à Boca do Inferno em Cascais, uma cigarreira de – claro, se não o próprio - Aleister Crowley com uma mensagem debaixo dela. Segundo os fatos contados, Crowley tinha ido para Sintra no dia 23 (portanto 2 dias antes), saído do país no mesmo dia, havendo regressado ao país, mais precisamente à Lisboa no dia 24, e no dia 25 a (sua então suposta) mensagem era encontrada à beira da Boca do Inferno. A dita carta, regia-se pelo seguinte:

Visualização criada pelo editor deste texto para ilustrar seu trabalho.
A grafia é bem semelhante a de Crowley.
Para termos uma melhor compreensão da mesma (a foto acima é mera ilustração do editor, aproximando-se da grafia de Crowley), ponho abaixo:             
"Ano 14, Sol em Balança
L.G.P.
Não posso viver sem ti. A outra “Boca do Inferno” apanhar-me-á - não será tão quente como a tua.
Hisos!
Tu
Li
Yu"
Fernando Pessoa interpretou-a, afirmando que o “Ano 14” era o ano de 1930, segundo a cronologia adaptada por Crowley; “L.G.P.” assumiu que não fazia ideia do que significaria, sendo talvez a denominação mística da Mulher Escarlate; “Hisos”, também não o sabia, embora achasse que uma palavra secreta seria, só para ser entendida por Miss Jaeger; “Tu Li Yu” era o nome de um sábio chinês que viveu cerca de três mil anos antes de Cristo, e de quem fantasticamente Crowley dizia ser sua encarnação.
Por fim, o Sol em Balança: Fernando Pessoa afirmava que o Sol tinha entrado em Balança no dia 23 de Setembro, e que logo, desse modo, essa mensagem teria sido escrita entre o dia 23 e a tarde do dia 25, quando a mesma foi encontrada.
Pessoa dizia ainda que a natureza da mensagem revelava o que tinha acontecido, pois afirmava convicto, que nenhum ocultista usaria como assinatura o nome da sua encarnação, a não ser quando esse fosse ao encontro dessa, ao encontro do seu “ser essencial” - "Sobre o fato de Crowley assinar a carta, não com o próprio nome, nem com nenhum dos seus nomes ocultos ou maçônicos, mas com o nome representativo do que considera a sua primeira encarnação representativa, ou seja o primeiro "ser essencial", também haveria algumas observações a fazer, e de algum modo viriam para o caso. O que aí está, porém, já basta".
Existem autores que dizem que Aleister Crowley desapareceu na Boca do Inferno, para ir até a Serra de Sintra, através dos subterrâneos que ali se iniciam. E se se levar em conta aquilo que Fernando Pessoa afirma ser a natureza do acontecido (de regresso ao “ser essencial”) então poderá fazer todo o sentido a quem nisso acredite.
Contudo, Fernando Pessoa nunca esteve estado com Aleister Crowley em Sintra; se bem que Crowley tenha ficado no Casal de Santa Margarida (próximo ao Bar Estrada Velha), há quem diga que a foto que se encontra no final do texto, foi tirada em Sintra, durante um jogo de xadrez entre poeta e mago.
Um mistério? Sem dúvida!
Caso queiram, poderão saber a solução do Mistério da Boca do Inferno, bem como a história da fotografia de Aleister Crowley e Fernando Pessoa jogarem xadrez num café em Sintra.
Mas... Quererás mesmo desvendar o mistério e torná-lo só em história, ou preferes que a história continue um enigma?

Tens a mais pura e concreta certeza que desejas ler a solução para este mistério? De certeza? Pergunto isto porque os portugueses em geral (e os leitores brasileiros que me perdoem, mas não ficam muito atrás) têm a capacidade inata para preferir o fantasioso desconhecido ao cru cerne da verdade, sempre optando antes por se deixar cair em divagações acerca da vida, do que pensamentos concretos acerca da história. Bem, e não é isso o que verdadeiramente nos maravilha? O desconhecido, os “ses”, as infindáveis possibilidades, a incógnita, o enigmático, o espiritual… tudo isso gera em nós um desejo de nos recriarmos com as grandes criações do Universo, e de nos maravilharmos com os estranhos acontecimentos que na vida de cada um de nós sucede, raramente, frequentemente, ou em algum importante momento das nossas vidas.
Ainda assim, na suposta solução deste mistério, ficarão algumas razões intrínsecas das individualidades que esta verídica história constituem, por descortinar… provavelmente, para todo o sempre.
Mas, adiante! Adiante! Se tens mesmo a certeza de que queres saber o desfecho d’O Mistério da Boca do Inferno, siga as considerações finais!

De forma crua e seca, apresento de imediato e perante si, um excerto de uma carta de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões:

(nota: o poema Hymn to Pan / Hino a Pã, foi publicado na
Revista Presença número 33, Julho/Outubro de 1933)
Ora, após ler isto, qualquer pessoa ficará com a sensação de que se tratou apenas de uma espécie de golpe publicitário oriundo do jornalismo de Augusto Ferreira Gomes e do ocultismo de Aleister Crowley.
Porém, nenhum fato concreto existe para, de forma indubitável, apoiar essa crença; à exceção da indubitável forma com que desconfiamos dos nossos semelhantes. É certo também, que na década de trinta do século passado, “golpes publicitários” eram coisas que ainda percorriam rústicos caminhos. E, que necessidade teria o mago, o afamado e infame pela sua negra fama, de dar um “golpe publicitário”, ainda mais para um em que simulava a sua morte, sem sequer ter uma miraculosa segunda parte, onde deveria estar focado na sua “suposta” ressurreição?
Deste modo, podemos depreender que, caso “golpe publicitário” fosse, teria sido urdido com contornos muito mais definidos e achoados para a percepção de quem dele fosse “vítima” – ou seja, o público em geral. Mas não foi isso que se passou. Afinal de contas, nenhuma ênfase foi dada ao suposto reaparecimento de Aleister Crowley, residindo na Alemanha.
Contudo, para além da desconfiança inerente a cada um de nós, acerca do seu semelhante – ainda mais quando a magia se torna em propositada ação de interesse – qualquer pessoa nota um tom de ironia nas palavras que Fernando Pessoa dirige a João Gaspar Simões acerca de Aleister Crowley, o que é todavia estranho, ainda para mais se atentarmos ao tipo de escrita presente na maior parte da correspondência que Fernando Pessoa mantinha com seus amigos e conhecidos.
Que se trataria então? De um “golpe publicitário”? Um “golpe publicitário” falhado por qualquer razão? Ou não teria sido Augusto Ferreira Gomes o comparsa de Aleister Crowley num esquema de alarido público, mas alguém que terá ajudado o mesmo a realizar alguma desconhecida ação? Terão alguns autores razão, quando falam da possível ida de Aleister Crowley da entrada de um gruta na Boca do Inferno, até ao cerne da Serra de Sintra?
Não nos esqueçamos de outra coisa: a estranha foto de Aleister Crowley e Fernando Pessoa a jogarem xadrez em Sintra, quando afinal os dois nunca lá estiveram em simultâneo.


Editado, Revisado e Traduzido por Dandan Gouveia, Fevereiro de 2013.