“Fernando
Pessoa e Sintra”, “O Mistério da Boca do Inferno”, ou “Fernando Pessoa e
Aleister Crowley”, são as possíveis designações de um mito envolvendo as
referidas figuras, a Serra de Sintra, e suas cercanias. Crowley,
nascido em Leamington, no dia 12 de Outubro de 1875, cujo verdadeiro nome tido
por Edward Alexander Crowley, o mesmo de seu pai, Edward Crowley - que fez
fortuna como cervejeiro e, reformando-se dedicou-se ao estudo da Teosofia -
viveram durante a primeira guerra mundial nos Estados Unidos, local onde veio a
escrever o Hino a Pã que Fernando Pessoa traduziu para a Língua Portuguesa - no
decorrer do texto encontra-se o poema na versão original inglesa, e sua tradução
portuguesa (original de Portugal). Assumindo então o nome de Aleister Crowler,
tornou-se num afamado mago no início do século XX, tendo a sua fama sido mais
conhecida pela infâmia com que os jornais de todo o mundo o descreviam, em
muito devido à excentricidade de sua vida, e ao radicalismo da sua comunicação,
ou as palavras e sentidos que essa sempre tomava.
Mago
e ocultista, Crowley se auto-intitulava Mago
Therion, e, também de forma mais negra, Besta
666. Aleister Crowley formou a Astrum
Argentum (também conhecida como "A.A."), ordem mística que
publicava material visto pelos críticos da altura como perverso e satânico.
Posteriormente formou também uma ordem pseudotemplária, a Ordo Templi Orientis (conhecida como "O.T.O."), que, com
a ajuda da imagem que a primeira a ser criada tinha, contribuiu para acentuar a
errónea imagem e sentido que alguns espalhavam sobre a suposta perversa face
dos Templários.
Fernando
Pessoa, famoso e imortal poeta português, criador/escritor de “Mensagem”,
enigmático poema sobre a “Portugalidade”, ou o papel e desígnios de Portugal -
também foi atraído pelo ocultismo ao longo de sua vida - estudou inúmeras
vertentes esotéricas as quais ia aprofundando ou abandonando conforme essas se
iam tornando falaciosas (como principal exemplo temos o da Madame Blavatsky,
grande bruxa Russa que, dizem as más línguas, foi uma das responsáveis pelo surgimento
dos ideais nazistas – faço menção para o tema “ideais”; sabemos que o nazismo
também tinha um cunho espiritual, visto que não era apenas um movimento
político) ou se transformando em sentimentos críveis dentro daquele. E assim se
passou com o estudo da influência dos astros: a partir de determinado período de
sua vida, dedicou-se ao estudo da Astrologia, e anos mais tarde decidiu aprofundá-la
ainda mais. E foi precisamente a Astrologia, que acabou por fazer com que os
dois se encontrassem.
Após
um circular anunciando “As Confissões de Aleister Crowley” (nota: tradução do Inglês
para o português de Portugal) em seis volumes, ter ido parar nas mãos de
Fernando Pessoa - a qual este achou interessantíssima -, diz a história que o
próprio receberia, a pedido seu, dias mais tarde, o primeiro desses seis
volumes. Ora, continha este primeiro volume um horóscopo escrito por Aleister
Crowley. Após o ter estudado por curiosidade, Pessoa percebeu que o horóscopo
estava errado, e que muito provavelmente Aleister Crowley teria nascido antes
da hora que esse apresentava. Ao enviar o valor do pagamento para os restantes
volumes, Fernando Pessoa adicionou às notas uma carta, pedindo para informarem
o senhor Crowley acerca do erro do seu horóscopo, presente no primeiro volume.
Passados
alguns dias - e para seu espanto - Fernando Pessoa recebeu uma carta do próprio
Aleister Crowley, agradecendo-lhe a indicação do erro no dito horóscopo. E
assim desse modo, iniciaram as famosas trocas de correspondências.
Tempos
depois, Fernando Pessoa ao enviar uns versos seus em inglês para Aleister
Crowley, versos estes que o primeiro estimava, recebeu como resposta, a
informação de que o mago o desejava conhecer pessoalmente, e assim que pudesse,
Portugal, tão solarento iria ser o próximo destino de suas viagens motivadas
por questões de saúde.
Segundo
João Gaspar Simões, biógrafo de Fernando Pessoa, esse viria a conhecer "um
estranho homem, verdadeiro Cagliostro dos tempos modernos, em cuja complexidade
e desenvoltura se acusam os traços típicos desse misto de charlatão e de
inspirado que o nosso tímido mistificador debalde procurou ser". João
Gaspar Simões escreveu ainda que Fernando Pessoa ficou muito preocupado com a tão
esperada visita "daquele feiticeiro - cuja espantosa biografia lhe fora
dado a conhecer lendo a história das suas estranhas aventuras na obra onde
discernira o erro de interpretação astrológica".
Crowley
chegou a Lisboa a 2 de Setembro de 1930, acompanhado pela Mulher Escarlate
(Miss Hanni Larissa Jaeger, sua assistente), a bordo do “Alcântara”, depois de
ter ficado retido em Vigo durante um dia, devido a um intensíssimo nevoeiro.
"Em terra, Fernando Pessoa, transido e tímido, vê avançar para ele um
homem alto, espadaúdo, envolto numa capa negra, cujos olhos, ao mesmo tempo
maliciosos e satânicos, o fitam repreensivamente, enquanto exclama: "Então
que ideia foi essa de me mandar um nevoeiro lá para cima?"" - João
Gaspar Simões, in Vida e Obra de Fernando
Pessoa: História duma Geração. Acabaram por ir depois para o Hotel
l’Europe, e só depois para o Hotel Paris, no Estoril. Depois da chegada, diz-se
que Fernando Pessoa só esteve com eles por duas vezes, tendo uma sido no
Estoril, e a outra em Lisboa. Porém, a 18 de Setembro Fernando Pessoa recebeu
uma carta de Crowley, contando-lhe que Miss Jaeger havia tido duas noites
atrás, um “formidável” ataque de histerismo, deixando o Hotel Miramar de pantanas,
e que logo na manhã que se seguiu, não havia sinal do rastro dela. Havia, simplesmente,
desaparecido.
O Caminheiro de Sintra
"Lembrei-me
um dia de traduzir o Hino a Pã, o que fiz, conforme o meu critério de traduzir
verso, em absoluta conformidade rítmica com o original. Mandei a V. o poema
para, como lhe disse, V. ver o que é propriamente um "poema mágico",
em comparação com um simples "poema a respeito de magia" como é o meu
"Último Sortilégio" - Carta de
Fernando Pessoa a João Gaspar Simões.
Abaixo,
mostrar-vos-ei o “Hino a Pã”, escrito por Crowley em 1929, traduzido para o
português por Fernando Pessoa. Confira a seguir (notas do editor):
Hino a Pã
(Tradução de Fernando Pessoa - Revista Presença n° 33,de Julho/Outubro de 1933)Vibra do cio subtil da luz,Meu homem e afãVem turbulento da noite a fluxDe Pã! Io Pã!Ioô Pã! Io Pã! Do mar de alémVem da Sicília e da Arcádia vem!Vem como Baco, com fauno e feraE ninfa e sátiro à tua beira,Num asno lácteo, do mar sem fim,A mim, a mim!Vem com Apolo, nupcial na brisa(Pegureira e pitonisa),Vem com Artêmis, leve e estranha,E a coxa branca, Deus lindo, banhaAo luar do bosque, em marmóreo monte,Manhã malhada da àmbrea fonte!Mergulha o roxo da prece ardenteNo ádito rubro, no laço quente,A alma que aterra em olhos de azulO ver errar teu capricho exulNo bosque enredo, nos nás que espalmaA árvore viva que é espírito e almaE corpo e mente - do mar sem fim(Io Pã! Io Pã!),Diabo ou deus, vem a mim, a mim!Meu homem e afã!Vem com trombeta estridente e finaPela colina!Vem com tambor a rufar à beiraDa primavera!Com frautas e avenas vem sem conto!Não estou eu pronto?Eu, que espero e me estorço e lutoCom ar sem ramos onde não nutroMeu corpo, lasso do abraço em vão,Áspide aguda, forte leão -Vem, está faziaMinha carne, friaDo cio sozinho da demonia.À espada corta o que ata e dói,Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!Dá-me o sinal do Olho Aberto,E da coxa áspera o toque erecto,Ó Pã! Io Pã!Io Pã! Io Pã Pã! Pã Pã! Pã.,Sou homem e afã:Faze o teu querer sem vontade vã,Deus grande! Meu Pã!Io Pã! Io Pã! Despertei na dobraDo aperto da cobra.A águia rasga com garra e fauce;Os deuses vão-se;As feras vêm. Io Pã! A matado,Vou no corno levadoDo Unicornado.Sou Pã! Io Pã! Io Pã Pã! Pã!Sou teu, teu homem e teu afã,Cabra das tuas, ouro, deus, claraCarne em teu osso, flor na tua vara.Com patas de aço os rochedos roçoDe solstício severo a equinócio.E raivo, e rasgo, e roussando fremo,Sempiterno, mundo sem termo,Homem, homúnculo, ménade, afã,Na força de Pã.Io Pã! Io Pã Pã! Pã!
Ainda no dia 18 do mesmo mês (apenas relembrando que estamos em
setembro), Crowley vem para Lisboa e encontra-se com Fernando Pessoa,
mostrando-se preocupadíssimo com Miss Jaeger, pois dizia que esta estava perturbadíssima
e tinha o desejo de suicidar-se, pois achava-se perseguida por um mago negro de
nome Yorke. Acabaram por nunca encontrar Miss Jaeger, nem a localizaram em
parte alguma da fronteira, sem ter a ciência se a mesma saíra do país em algum
momento.
Crowley ficou em Lisboa até o dia 23,
seguindo depois para Sintra, onde iria ficar uns dias no Casal de Santa Margarida (próximo ao bar Estrada Velha), perto da casa do dono do negócio da Shell em
Portugal. No entanto, Fernando Pessoa afirma ter visto Crowley por duas vezes
no dia 24, sendo que uma dessas vezes foi no Rossio, e outra no Cais do Sodré,
a entrar na Tabacaria Inglesa. Em ambas não estava a uma distância que pudesse
entrar em contato com Crowley. Interessante foi a Polícia Internacional, que
viria a dizer dias depois, que Crowley havia cruzado a fronteira Portuguesa, no
dia 23.
No dia 25 do referido mês, Augusto
Ferreira Gomes - amigo ocultista de Fernando Pessoa, jornalista no Notícias
Ilustrado - encontra acidentalmente junto à Boca do Inferno em Cascais, uma
cigarreira de – claro, se não o próprio - Aleister Crowley com uma mensagem
debaixo dela. Segundo os fatos contados, Crowley tinha ido para Sintra no dia
23 (portanto 2 dias antes), saído do país no mesmo dia, havendo regressado ao
país, mais precisamente à Lisboa no dia 24, e no dia 25 a (sua então suposta)
mensagem era encontrada à beira da Boca do Inferno. A dita carta, regia-se pelo
seguinte:
![]() |
Visualização criada pelo editor deste texto para ilustrar seu trabalho. A grafia é bem semelhante a de Crowley. |
Para
termos uma melhor compreensão da mesma (a foto acima é mera ilustração do
editor, aproximando-se da grafia de Crowley), ponho abaixo:
"Ano 14, Sol em Balança
L.G.P.
Não posso viver sem ti. A outra “Boca do Inferno” apanhar-me-á - não será tão quente como a tua.
Hisos!
Tu
Li
Yu"
Fernando
Pessoa interpretou-a, afirmando que o “Ano 14” era o ano de 1930, segundo a
cronologia adaptada por Crowley; “L.G.P.” assumiu que não fazia ideia do que
significaria, sendo talvez a denominação mística da Mulher Escarlate; “Hisos”,
também não o sabia, embora achasse que uma palavra secreta seria, só para ser
entendida por Miss Jaeger; “Tu Li Yu” era o nome de um sábio chinês que viveu
cerca de três mil anos antes de Cristo, e de quem fantasticamente Crowley dizia
ser sua encarnação.
Por
fim, o Sol em Balança: Fernando Pessoa afirmava que o Sol tinha entrado em
Balança no dia 23 de Setembro, e que logo, desse modo, essa mensagem teria sido
escrita entre o dia 23 e a tarde do dia 25, quando a mesma foi encontrada.
Pessoa
dizia ainda que a natureza da mensagem revelava o que tinha acontecido, pois
afirmava convicto, que nenhum ocultista usaria como assinatura o nome da sua
encarnação, a não ser quando esse fosse ao encontro dessa, ao encontro do seu
“ser essencial” - "Sobre o fato de Crowley assinar a carta, não com o
próprio nome, nem com nenhum dos seus nomes ocultos ou maçônicos, mas com o
nome representativo do que considera a sua primeira encarnação representativa,
ou seja o primeiro "ser essencial", também haveria algumas
observações a fazer, e de algum modo viriam para o caso. O que aí está, porém,
já basta".
Existem
autores que dizem que Aleister Crowley desapareceu na Boca do Inferno, para ir até
a Serra de Sintra, através dos subterrâneos que ali se iniciam. E se se levar
em conta aquilo que Fernando Pessoa afirma ser a natureza do acontecido (de
regresso ao “ser essencial”) então poderá fazer todo o sentido a quem nisso
acredite.
Contudo,
Fernando Pessoa nunca esteve estado com Aleister Crowley em Sintra; se bem que
Crowley tenha ficado no Casal de Santa
Margarida (próximo ao Bar Estrada
Velha), há quem diga que a foto que se encontra no final do texto, foi
tirada em Sintra, durante um jogo de xadrez entre poeta e mago.
Um
mistério? Sem dúvida!
Caso
queiram, poderão saber a solução do Mistério da Boca do Inferno, bem como a
história da fotografia de Aleister Crowley e Fernando Pessoa jogarem xadrez num
café em Sintra.
Mas...
Quererás mesmo desvendar o mistério e torná-lo só em história, ou preferes que
a história continue um enigma?
Tens
a mais pura e concreta certeza que desejas ler a solução para este mistério? De
certeza? Pergunto isto porque os portugueses em geral (e os leitores brasileiros
que me perdoem, mas não ficam muito atrás) têm a capacidade inata para preferir
o fantasioso desconhecido ao cru cerne da verdade, sempre optando antes por se
deixar cair em divagações acerca da vida, do que pensamentos concretos acerca
da história. Bem, e não é isso o que verdadeiramente nos maravilha? O
desconhecido, os “ses”, as infindáveis possibilidades, a incógnita, o
enigmático, o espiritual… tudo isso gera em nós um desejo de nos recriarmos com
as grandes criações do Universo, e de nos maravilharmos com os estranhos
acontecimentos que na vida de cada um de nós sucede, raramente, frequentemente,
ou em algum importante momento das nossas vidas.
Ainda
assim, na suposta solução deste mistério, ficarão algumas razões intrínsecas
das individualidades que esta verídica história constituem, por descortinar… provavelmente,
para todo o sempre.
Mas,
adiante! Adiante! Se tens mesmo a certeza de que queres saber o desfecho d’O
Mistério da Boca do Inferno, siga as considerações finais!
De
forma crua e seca, apresento de imediato e perante si, um excerto de uma carta
de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões:
![]() |
(nota:
o poema Hymn to Pan / Hino a Pã, foi publicado na
Revista
Presença número 33, Julho/Outubro de 1933)
|
Ora, após ler isto, qualquer pessoa
ficará com a sensação de que se tratou apenas de uma espécie de golpe
publicitário oriundo do jornalismo de Augusto Ferreira Gomes e do ocultismo de
Aleister Crowley.
Porém, nenhum fato concreto existe para,
de forma indubitável, apoiar essa crença; à exceção da indubitável forma com
que desconfiamos dos nossos semelhantes. É certo também, que na década de
trinta do século passado, “golpes publicitários” eram coisas que ainda
percorriam rústicos caminhos. E, que necessidade teria o mago, o afamado e
infame pela sua negra fama, de dar um “golpe publicitário”, ainda mais para um
em que simulava a sua morte, sem sequer ter uma miraculosa segunda parte, onde
deveria estar focado na sua “suposta” ressurreição?
Deste modo, podemos depreender que,
caso “golpe publicitário” fosse, teria sido urdido com contornos muito mais
definidos e achoados para a percepção de quem dele fosse “vítima” – ou seja, o
público em geral. Mas não foi isso que se passou. Afinal de contas, nenhuma ênfase
foi dada ao suposto reaparecimento de Aleister Crowley, residindo na Alemanha.
Contudo, para além da desconfiança
inerente a cada um de nós, acerca do seu semelhante – ainda mais quando a magia
se torna em propositada ação de interesse – qualquer pessoa nota um tom de
ironia nas palavras que Fernando Pessoa dirige a João Gaspar Simões acerca de
Aleister Crowley, o que é todavia estranho, ainda para mais se atentarmos ao
tipo de escrita presente na maior parte da correspondência que Fernando Pessoa mantinha
com seus amigos e conhecidos.
Que se trataria então? De um “golpe
publicitário”? Um “golpe publicitário” falhado por qualquer razão? Ou não teria
sido Augusto Ferreira Gomes o comparsa de Aleister Crowley num esquema de
alarido público, mas alguém que terá ajudado o mesmo a realizar alguma
desconhecida ação? Terão alguns autores razão, quando falam da possível ida de
Aleister Crowley da entrada de um gruta na Boca do Inferno, até ao cerne da
Serra de Sintra?
Não
nos esqueçamos de outra coisa: a estranha foto de Aleister Crowley e Fernando
Pessoa a jogarem xadrez em Sintra, quando afinal os dois nunca lá estiveram em
simultâneo.
Editado, Revisado e Traduzido por Dandan Gouveia, Fevereiro de 2013.