sábado, 18 de junho de 2011

Analisando Kubrick: "Lolita"

       A importância de Stanley Kubrick na História do cinema é tamanha que pela segunda vez aqui o destaco. E será assim durante toda sua filmografia que será disponibilizada aqui. Lançado em 1962, Lolita é o sexto longa da carreira de Stanley Kubrick. Após sua experiência em Spartacus, tendo que brigar com Kirk Douglas por controle criativo, Kubrick decidiu que produziria seus próprios filmes. Lolita foi o primeiro, e nesse contexto, ganha importância por ser o primeiro passo do diretor em direção ao ideal de criar o seu próprio cinema. É interessante ainda destacar que houve problemas no roteiro, na seleção do elenco e na edição, tudo em função do tema polêmico (Gary Grant teria recusado indignado a oferta do papel principal). E é ainda em Lolita que se encontram pela primeira vez dois gênios, Kubrick (famosíssimo diretor) e Peter Sellers (famoso ator), que juntos criariam, dois anos mais tarde, talvez a maior atuação do cinema.
     Stanley Kubrick dizia gostar de adaptar livros medíocres, pois eles rendiam bons filmes. Assim sendo, não chega a surpreender a ironia de que o livro mais célebre adaptado para o cinema pelo diretor tenha resultado em sua obra de menor prestígio – com as possíveis exceções de Fear and Desire e A Morte Passou por Perto, obras do início da carreira do diretor. Adaptação do romance do russo Vladimir Nobokov sobre a relação pedófila entre um homem de meia-idade e a sua enteada de doze anos, Lolita teve censura fortíssima na época, contudo, obrigou o realizador a transformar em subtis sugestões toda a relação sexual entre ambos, resultando em momentos de grande carga erótica ainda assim, como quando Humbert (James Mason) pinta as unhas dos pés de Lolita (Sue Lyon).
        O primeiro passo para analisar Lolita deve ser, então, buscar razões com que se possa justificar o motivo de ser essa a obra que menos agrada o público. O motivo mais óbvio é o tema, bastante indigesto. Afinal, todo ser humano tem um limite de tolerância para com a torpeza da vida e da humanidade, e o sofrimento de crianças e jovens, em especial por motivos sexuais, excede esse limite para muita gente. Isso pode ser especialmente verdadeiro para espectadores conservadores e para pais e mães que vejam na menina Lolita suas próprias crianças. Com relação aos cinéfilos, em especial os fãs do diretor, o motivo anterior perde força, e o que provavelmente mais pesa contra Lolita é a comparação com os outros filmes de Kubrick. É provável que, ao assistir a esse filme, se tenha em mente a ousadia narrativa e visual dos clássicos 2001: Uma Odisséia no Espaço (um dos posts anteriores) e Laranja Mecânica; Lolita, bem menos ousado e inovador, sai perdendo.
       Mas calma, porque nada disso significa tratar-se de uma obra pequena ou medíocre. É possível notar a mão talentosa do diretor em diversas seqüências do longa. Tome como exemplos a conversa entre Humpert e o psicólogo da escola de Lolita; o encontro de Humpert e de Clare Quilty na varanda do hotel e a perseguição na auto-estrada, todas elas realizadas com maestria, criando tensão de uma forma que poucos diretores conseguiriam extrair de seqüências “tão simples”. As duas primeiras cenas citadas acontecem em ambientes escuros e claustrofóbicos, e contrapõem os personagens de maneira que o resultado é o que mais perto se poderia chegar de um duelo de faroeste expressionista. A seqüência da perseguição de carros, além de tecnicamente excelente, é também emblemática, pois marca o ponto a partir do qual o pouco controle que ainda restava a Humpert sobre sua vida termina. A partir dali, os acontecimentos o carregam, sem que ele consiga impedi-los, até que o personagem chegue a seu trágico destino.
       Muito mais interessante do que os méritos técnicos, são os questionamentos que a obra levanta e os temas que ela aborda. A versão de Kubrick não perde tempo justificando os motivos dos personagens, como o comportamento obsessivo de Humpert, sua degradação mental, a perda do seu caráter, e eventualmente, a maneira como a obsessão do mesmo destrói todos os que entram em contato com Lolita. Kubrick transforma uma vaga noção de amor que o personagem teria pela menina, e o arremessa em um redemoinho que inicialmente, por ser muito amplo, não dá a impressão de estar puxando Humpert para o fundo. Pois o amor tem mesmo uma faceta obsessiva, que obviamente não se manifesta em todos na forma corrosiva que destrói Humpert, mas que é capaz de, em alguns momentos, trazer à tona o pior de cada pessoa. Quando o amor é sadio, porém, essa exposição é seguida de compreensão e o que termina por ficar à superfície mesmo é o que cada um tem de melhor. Isso não ocorre com o personagem principal de Lolita por dois motivos. O primeiro é óbvio, sua própria natureza instável. O segundo se refere a sua amada, e ao comportamento dela em relação a ele.
       Diante disso, surge um outro questionamento essencial da obra: até que ponto existe mesmo a tal inocência da juventude? A personagem-título não é exatamente uma criança, mas para a época em que o romance foi escrito, ainda deveria estar na idade da inocência. Não obstante, ela manipula e engana Humpert seguidamente. Seria apenas um reflexo da presença negativa dele e da proximidade entre os dois? Teria ela consciência das regras que infringia, não apenas leis, mas também regras sociais? Considerando que há um debate sempre acirrado em relação à diminuição da maioridade penal no nosso país, Lolita é uma obra que, mesmo após mais de quatro décadas, não deixa de ser atual. Pois se no filme o catalisador da “maldade” da personagem é o sexo, na vida real são a miséria e o crime, mas que diferença existe mesmo entre Lolita e os menores envolvidos no tráfico de drogas? Quando se pensa não apenas no caráter atemporal de sentimentos como o amor e a obsessão, mas na criminalidade infantil e nos casos de pedofilia, envolvendo até membros do clero, percebe-se que é pouco provável que Lolita deixe de ser uma obra atual. E isso é provavelmente a maior conquista a que uma obra de arte pode almejar, pois críticos e opiniões vêm e vão, mas quem dá a última palavra é sempre o tempo.
      Para aumentar a carga dramática do filme Kubrick optou por subverter a ordem cronológica do romance, transformando a narrativa iniciada “in media res” num enorme flash-back que nos apresenta o início da relação do Professor Humbert com Charlotte (Shelley Winters) e a progressiva atração deste pelos gostos da enteada. O diretor viu-se obrigado a aumentar a idade da garota para catorze anos, e não os doze originais de forma a atenuar o ato pedófilo. O filme, rodado inteiramente em preto e branco e condenado pela dureza da censura, não deixa de ser de uma enorme ousadia, assumida de resto no slogan que acompanhou a sua promoção “How did they ever make a movie of Lolita?”. A temática da obsessão sexual, tal como outras obsessões, atravessou a obra do diretor, mas voltou a ser especificamente abordada no fim da sua carreira em De Olhos Bem Fechados. A título de curiosidade, Sue Lyon tinha 16 anos quando filmou esse filme.
      A única maneira digna de terminar essa resenha é lembrar a memorável atuação de Peter Sellers (ou mais uma delas) e dizer que, apesar de ser um dos filmes menos prestigiados do diretor, Lolita tem um mundo a oferecer ao espectador, se ele tiver estômago para embarcar na jornada. Em uma palavra, é Kubrick.

Lolita, Inglaterra, 1962, 152 min. Original em Preto e Branco. Distribuido pela Warner Bros.
Com James Mason, Shelley Winters, Sue Lylon, Gary Cockrell, Jerry Stovin e Peter Sellers. Dirigido por Stanley Kubrick. 

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